Modernidade líquida: uma felicidade paradoxal

Logo no início dos anos 2000, Bauman nos presenteou com uma obra repleta de metáforas que incitam reflexões profundas sobre o ser e o ter na pós-modernidade. Modernidade essa caracterizada como líquida pelo autor, ilustrando a fluidez de nossas ações, decisões e relações sociais nos tempos de hoje. Esta obra não é a única do autor que traz a metáfora do líquido como título e enredo, encontramos a mesma ontologia em Amor Líquido e Medo Líquido, por exemplo, o que reforça a dedicação deste nobre pensador em compreender o estado efêmero e volátil das relações pós-modernas, seja no que tange o trabalho, família, comunidade, tempo ou espaço. Seus escritos nos fazem refletir sobre a transitoriedade contínua, onde nada mais é feito para durar. Também nos fazem refletir sobre o fato de não refletirmos sobre nossa vida com frequência, afinal estamos sempre na velocidade que a modernidade líquida nos exige e imersos no individualismo que nos cega.

Zygmunt Bauman - Modernidade Líquida
Zygmunt Bauman – Modernidade Líquida – Crédito da foto: Samuel Sanchez do El Pais

Adentrando mais especificamente na Modernidade Líquida, o sociólogo polonês nos conduz, com maestria e prolixidade, por cinco macro tópicos que foram divididos nos seguintes capítulos: emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade. Ainda no prefácio, Bauman diz que “o que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos “poderes de derretimento” da modernidade” e, dito isso, elucida nos capítulos seguintes de que forma a modernidade está derretendo. Quando fala da emancipação, as reflexões giram em torno da libertação, dependência, rotina e hábitos. Quando fala da individualidade, ressalta a mudança de paradigma da “modernidade sólida”, onde nosso “coração fordista” nos prendia em correntes invisíveis, sendo que hoje as correntes são outras, mas para muitos continuam invisíveis. Mostra também que as infinitas possibilidades de um mundo globalizado podem ser divertidas e gerar a sensação da “liberdade de tornar-se qualquer um”, mas, ao mesmo tempo, diz que a “infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha”. Sobre tempo/espaço Bauman almeja nos mostrar que outrora foram conceitos concretos e absolutos, em nossa modernidade são líquidos e relativos. “A duração deixa de ser um recurso para tornar-se um risco; o mesmo pode ser dito de tudo o que é volumoso, sólido e pesado – tudo o que impede ou restringe o movimento”. As pessoas se distanciam cada vez mais dos espaços públicos e estes nem sempre propiciam a civilidade que se espera. Sobre trabalho o autor frisa que foi “elevado ao posto de principal valor dos tempos modernos”, ainda que seja um campo repleto de incertezas. Trocamos de trabalho como trocamos de roupa (o mesmo se dá com os relacionamentos) e raramente o propósito de vida está por trás dessas decisões, ou seja, trocamos com base em racionalidade instrumental e/ou hedonista. Por fim, sobre comunidade, Bauman afirma que sempre existiram, o que mudam são os valores de cada uma e a razão pelas quais se formam. Na modernidade líquida preferimos algo que possamos “usar pela manhã e despir à noite (ou vice-versa)”. Ao mesmo tempo queremos nos sentir parte de algo, e por vezes acabamos nas “comunidades de carnaval”, que “dão um alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas […] e como todos os eventos de carnaval liberam a pressão e permitem que os foliões suportem melhor a rotina a que devem retornar no momento em que a brincadeira terminar”.

Entre todas as reflexões e conceitos que o livro nos apresenta, algo que ganha destaque é o consumismo moderno. Em diversos momentos Bauman faz referência ao indivíduo consumidor e a transição da sociedade de produção para uma sociedade de consumo. Foi nesse processo em que o ser foi sobreposto pelo ter, que o individual foi sobreposto pelo comunitário e que a vida humana passou a se fragmentar. A lógica de felicidade neste mundo globalizado está muito associada ao eu, fortalecendo o individualismo. E é nos templos de consumo, como chama Bauman, que se formam as “comunidades de carnaval” onde todos esquecem dos problemas corriqueiros, das diferenças de cor, gênero e classe social e se sentem parte de uma comunidade com um único propósito. Neste local ninguém é julgado e todos se sentem seguros. “Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma “realidade real” externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança. Dentro de seus templos, os compradores/consumidores podem encontrar, além disso, o que zelosamente e em vão procuram fora deles: o sentimento reconfortante de pertencer – a impressão de fazer parte de uma comunidade”.

Tendo este recorte da Modernidade Líquida como base, o ensaio Felicidade Paradoxal de Lipovetsky vem a contribuir para discussão como um ponto de vista diferente de Bauman. Esta obra tem por objetivo problematizar os rumos que a sociedade vem tomando no que tange o preenchimento de vazios por meio do consumo, o que representaria uma felicidade paradoxal. Lipovetsky discute a forma como o capitalismo foi pensado e é operado para garantir felicidade e também aborda os desejos e frustrações que criamos por influência da publicidade. Por fim, ressalta que temos que buscar um equilíbrio entre essas relações paradoxais e uma reavaliação da formação dos indivíduos rumo à era pós-hiperconsumo. Lipovetsky trata de felicidade, termo carente de significado único. Ele tem sua ótica sobre o que é (ou pode ser) felicidade; Bauman tem outra. Assim como cada um de nós temos nossa liberdade para dar o entendimento que quisermos ao que é ser feliz. Mas há coisas que não deixam muita margem para discussão, como o fato de vivermos em uma sociedade hiper consumista, de valores frágeis e voláteis. O que fica claro com a leitura de Bauman é que o fato de consumirmos em demasia e buscarmos nos templos de consumo nossas comunidades é um dos fatores do derretimento de nossos valores (que um dia foram) sólidos. Com Lipovetsky temos uma perspectiva hedonista de consumo, onde os vazios podem ser preenchidos por meio de compras nos templos de consumo. Nos tornamos hiper consumidores que fazem uso das “pílulas” de felicidade como fuga dos problemas reais, mantendo o status quo de viver em partes e com cada vez mais medo de olhar e pensar no todo. Dito isso fica um tanto claro que a felicidade paradoxal de Lipovetsky faz com que os valores que Bauman “tenta” resgatar fiquem ainda mais distantes, guardados na “era sólida”.

Para encerrar, agora não como contraponto mas complemento da ideia central de Bauman, a obra Em busca de sentido de Viktor Frankl problematiza ainda mais o fato de vivermos em uma modernidade líquida, ainda que não diretamente. Baseado em seu relato pessoal de vivência nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, Frankl nos faz refletir sobre o propósito de nossas vidas, apresentando a logoterapia como um possível método para tal descoberta. “Meu caro, seu problema é que você não tem sonhos, não tem objetivos na vida”. E o outro reagia: “Puxa, como você quer que eu tenha objetivos na vida se estou num campo de concentração e não sei nem mesmo se estarei vivo amanhã!?”. E o médico insistia: “Pois é justamente a existência dos sonhos que garantirá que você esteja vivo amanhã”. O primeiro questionamento que fica é: como ter sonhos (sólidos) em uma modernidade líquida? Se partimos do pressuposto que um sonho, não no sentido romântico da coisa, necessita de planejamento e visão de longo prazo, é difícil tê-los em uma sociedade líquida que “escorre”, “respinga”, “transborda”, “vaza”, “inunda”. Encontrar um sentido dentro de cada um de nós, como sugere a logoterapia, e pensar no futuro que nos aguarda não parece algo tão simples para indivíduos que anseiam apenas o presente. Ou seria a sociedade um tanto pandeterminística? Quer dizer, já que todos caminham nos rumos da modernidade líquida é isso mesmo que nos reserva e nada mais? Assim como “adaptamos” nossos valores e crenças para o que estamos observando na era líquida, podemos muito bem adaptá-los novamente para uma era nova. Nem tão sólida, nem tão líquida. Uma era mais humana.

Ficou interessado nos livros que citei aqui? Veja as referências abaixo e procure em bibliotecas, sebos e livrarias. Cada página valeu muito para mim.

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.
  • FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1991.
  • LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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