O dia em que Kant uniu Bacon e Descartes

Francis Bacon, René Descartes e Immanuel Kant estavam em um mesmo hotel e não sabiam. Os três vieram para Florianópolis a convite da professora Carolina Andion, uma entusiasta do estudo da ciência. Carol, como é carinhosamente chamada por seus pares e alunos, sempre sonhou em organizar um encontro científico onde o foco das discussões seria a epistemologia da ciência. Elaborou a agenda do encontro com muito cuidado, de modo a retratar toda a construção histórica da ciência. Como sonhar grande e sonhar pequeno dá o mesmo trabalho, Carol optou por sonhar grande, convidando os principais nomes da epistemologia para participarem do encontro. Como estudou na França, Carol já era amiga de Descartes, o qual aceitou o convite prontamente. Depois, Carol foi atrás de Bacon, com o argumento de que se ele não participasse do encontro deixaria passar a oportunidade de contrapor Descartes frente a uma audiência cativa. Deu certo. E assim ela seguiu, conseguindo confirmações de diversos nomes de peso com sua força nordestina. Como o aceite de Kant, que foi convidado por Carol para fazer a abertura do evento dando uma palestra inspiradora sobre a Ética Deontológica na perspectiva dos problemas atuais do Brasil. E é por isso que os três estavam no mesmo hotel.

Descartes estava se sentindo em casa no hotel Mercure. Além de saber pronunciar corretamente o nome do hotel em seu nativo francês, todo o café da manhã tinha lastro na culinária do seu país. Bacon não teve a mesma sorte. Do seu delicioso full english breakfast que estava acostumado, apenas os ovos se faziam presentes, mas não eram fritos e sim mexidos. Fora o fato de que todos zombavam de seu sobrenome. Ao menos, a música ambiente era do Led Zeppelin, banda que embalou noites memoráveis para Bacon em terras londrinas. Kant, que nunca tinha saído de Königsberg antes, estava maravilhado com a ilha da magia. Como um bom prussiano, optou por tomar algumas cervejas no café da manhã, mas se decepcionou com a baixa qualidade das cervejas comerciais brasileiras. A despeito de qualquer detalhe, o hotel vinha cumprindo um papel importante na recomposição das energias dos pensadores, que tinham viajado por muitas horas para comparecer o evento de Carol. Não obstante, algo aconteceria no café da manhã do dia seguinte e que ficaria marcado como um ponto de inflexão na ciência.

Bacon chegou no café muito cedo e acabou por sentar sozinho em uma mesa para quatro pessoas. Amante das músicas que tocavam no hotel, optou por tomar seu café de forma lenta, apreciando muitas músicas inglesas. Por ter ficado um longo período de tempo no recinto, presenciou a entrada e a saída de muitas pessoas, até o momento em que o local ficou extremamente cheio, sendo necessário dividir sua mesa com pessoas estranhas. E foi neste momento que Descartes e Bacon se encontraram, para além de suas obras escritas, pela primeira vez. Bacon agiu naturalmente pois sabia que encontraria a figura cedo ou tarde. Afinal, foi para trazer seu contraponto que Carol o convidou. Mas acontece que Descartes não esperava por este encontro. Como estratégia, Carol optou por não contar a ele com receio de que o mesmo se sentisse magoado pelo fato de uma grande amiga ter convidado um sujeito com pensamentos tão diferentes do que ele julgava como correto. Não tinha para onde correr. Descartes precisava sentar em algum lugar para apreciar seu croissant. Os dois se olharam por um tempo e ficaram em silêncio. Até que em algum momento as primeiras palavras começaram a ser ditas e, num piscar de olhos, o tom de voz foi aumentando. Todos ao redor olhavam com estranheza pois sequer compreendiam o cerne da discussão: racionalismo ou empirismo? Objeto ou sujeito? De que diabos estão falando? Quem poderia ajudar? Claramente, a conversa entre eles não iria para um caminho propositivo. Nenhuma das partes esboçou sinais de agressão verbal ou física, pelo menos nisso eles concordavam. O problema é que nenhum dos dois estava de fato aberto a ouvir.

Kant estava de sunga e convicto de que encontraria melhores cervejas no bar flutuante da piscina do hotel. Passou brevemente pelo salão do café pois queria coletar uns cubos de queijo para harmonizar com sua cerveja. Quanto mais se aproximava do buffet, mais escutava o diálogo entre Descartes e Bacon. Pela primeira vez, alguém no recinto entendia do assunto em questão. Kant sentiu seu coração bater mais forte a cada frase que ouvia, mas ele ainda não tinha visto os responsáveis por tal diálogo, estavam no segundo andar. Naquele momento, Kant deixou sua toalha e seus cubos de queijo no primeiro armário que viu, bem como sua vontade de encontrar melhores cervejas. Agora, sua vontade era apenas uma: mudar o rumo da ciência. Ao subir as escadas, Kant já estava convicto de que encontraria, de um lado, Descartes, Spinoza ou Leibniz; de outro, Locke, Bacon ou Hume. Ele estava certo e abriu um imenso sorriso ao se aproximar da mesa. Sentou e sem nem se apresentar, falou: cavalheiros, se me permitem, vocês não estão agindo de um modo propositivo. Vocês precisam se ouvir com calma, compreender a trajetória de cada um, sua visão de mundo e seus argumentos. Me deixem ajudá-los? Ambos respiraram fundo e acenaram a cabeça positivamente. Não obstante, ambos pensaram ser pouco provável que uma pessoa de sunga no café da manhã tivesse algo a contribuir de fato.

Kant tinha um forte repertório de comunicação não violenta pois gostava de acompanhar os conteúdos de uma organização chamada Politize!, a qual havia sido indicada a ele por Carol. Tal organização trabalha para fortalecer a democracia brasileira por meio da educação política, tendo por uma de suas ferramentas a CNV. Com isso, Kant indicou os princípios necessários para a continuidade da conversa, quais sejam: a) reconhecer emoções no outro; b) não julgar; c) entender a perspectiva do próximo. Os princípios estão fortemente ancorados nas ideias de pluralidade de ideias, empatia e modelos mentais. Feito isso, Kant estruturou um processo de escuta ativa, onde não foi permitido a interrupção; de indagações, onde é importante fazer perguntas que contribuam para o entendimento; de parafraseamento, onde a compreensão é confirmada por meio da repetição dos argumentos ditos; de reflexão, onde estamos abertos para ouvir sugestões de melhoria para as lacunas em nossos argumentos.

A conversa fluiu de uma forma completamente diferente. O café da manhã virou almoço. O almoço virou petisco e cerveja na piscina. Kant não precisou expor uma vírgula de seu criticismo. Ele fez com que ambos chegassem na reflexão sobre sujeito e objeto, númeno e fenômeno, realismo e idealismo, sozinhos. Descartes, que acredita na dúvida como método, saiu duvidando de si mesmo e mais interessado em tecer pontes epistemológicas do que muros. Bacon ligou para a Carol e disse que tinha recém experienciado algo marcante e que gostaria de sugerir uma adaptação na agenda do encontro. E a ciência nunca mais foi a mesma. Kant não estava interessado em um fim específico, como impor suas ideias ou ser reconhecido por uma nova teoria. Kant agiu por sua boa vontade, pelo dever, com seu imperativo categórico. O que ninguém percebeu é que Comte e Hegel estavam no hotel e presenciaram todo o ocorrido, mas isso é cena dos próximos capítulos.

Nota: Carolina Andion é uma professora da ESAG/UDESC, com a qual tive o privilégio de aprender bastante. A presente crônica foi produzida durante a sua disciplina de Epistemologia da Ciência em Administração e também foi publicada no blog “Kritiké: crítica e reflexividade“.

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